17 de abril de 2024

Tragédia de Mariana, 5 anos: sem julgamento ou recuperação ambiental, 5 vidas contam os impactos no período

G1 relembra o desastre pela perspectiva de cinco atingidos diretamente por ele: um sobrevivente, um bombeiro, um promotor, uma ativista e um pescador.

Esperança, preparação para o inesperado, injustiça, tristeza e revolta. Nesta quinta-feira (5), o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), completa cinco anos e, com essas palavras e expressões, cinco pessoas que tiveram as vidas impactadas pelo maior desastre ambiental do país resumem estes 60 meses.

A barragem da Samarco, cujas donas são a Vale e BHP Billiton, rompeu-se na tarde do dia 5 de novembro de 2015, provocando 19 mortes. Além de destruir casas, o mar de lama devastou o Rio Doce e atingiu o oceano no Espírito Santo.

Nestes mais de 1,8 mil dias, os responsáveis pela tragédia não foram julgados. Em 2019, o crime de homicídio foi retirado do processo. As mortes provocadas pelo rompimento da barragem foram consideradas pela Justiça como consequência da inundação causada pelo rompimento.

Durante este período, as comunidades destruídas não foram reconstruídas e ainda faltam respostas para a recuperação do meio ambiente.
Em mais um dia 5 de novembro sem a reparação definitiva dos danos causados rompimento da barragem, o G1 relembra os primeiros momentos do desastre pela perspectiva de cinco atingidos: um sobrevivente, um bombeiro, um promotor, uma ativista e um pescador. Eles também falam sobre impactos da tragédia em suas vidas ao longo desses cinco anos.

Francisco, sobrevivente

Enquanto a estrutura de Fundão ruía, Francisco de Paula Felipe, de 51 anos, estava na sua casa, em Bento Rodrigues, uma das comunidades arrasadas pela enxurrada de rejeitos. Naquela tarde, acompanhado da mulher, Marli de Fátima Felipe, e da sogra, Maria das Graças Celestino Silva, a dona Gracita, ele assistia na TV uma novela que falava sobre a bíblia.

O barulho da lama varrendo o que encontrava pela frente é algo que Francisco não se esquece. Era um estrondo que nunca tinha ouvido. Pensou em diversas possibilidades, até mesmo na barragem. Não demorou muito para que visse a avalanche de rejeito engolindo o distrito em que viveu por mais de 30 anos.

Como a casa de Francisco ficava em uma área mais alta, ele, a mulher e as duas filhas se salvaram ilesos. Mas a sogra dele saiu do local pouco tempo antes.

“Quando foi por volta das 15h40, ela [dona Gracita] foi para casa e mais tarde voltaria. Desceu e não voltou mais”, lembra. A sogra de Francisco, que tinha 64 anos, é uma das 19 vítimas da tragédia.

“A vida é uma coisa que nunca mais se recupera. Bens materiais, a gente consegue por outros no lugar, mas a vida não tem como voltar de novo. Só fica a saudade”, diz ele.

Além da sogra de Francisco, a mãe dele, Marcelina Xavier Felipe, de 80 anos, foi arrastada pela lama. Mas moradores da região conseguiram salvá-la. A idosa precisou ser internada e, mesmo cinco anos depois, convive com dores provocadas por sequelas do desastre.

Desde o dia em que foi obrigado a deixar tudo para trás, Francisco já teve quatro endereços. Hoje vive em um apartamento alugado pela Fundação Renova, entidade criada pelas mineradoras para gerir as ações de reparação dos danos causados pelo desastre.

Passados 60 meses da tragédia, ele afirma que ainda não foi indenizado porque, segundo Francisco, os valores estão sendo discutidos. De acordo com o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), de 925 núcleos familiares cadastrados em Mariana, até outubro, apenas 345 haviam recebido indenizações finais.

Ao longo destes cinco anos, nem sequer o projeto da casa de Francisco foi finalizado. Além dele, outras cerca de 210 famílias aguardam a conclusão das obras do novo Bento Rodrigues. O prazo fixado pela Justiça para a entrega do reassentamento é fevereiro de 2021, mas a pandemia do coronavírus impactou o andamento dos trabalhos, que foram suspensos duas vezes neste ano.

Segundo o MPMG, apenas duas moradias estavam em fase de finalização em outubro. De acordo com a Renova, atualmente, a construção de 5 casas, da escola, do posto de serviços e do posto de saúde está em andamento.

Recentemente, o diretor-presidente da entidade, André de Freitas, reconheceu que muito tempo está sendo gasto nas obras, mas disse que a fundação se esforça para dar celeridade ao processo. Entretanto, esse não é o sentimento dos moradores, que já esperam por mais atrasos. Dois, quatro ou até cinco anos. Para Francisco, é difícil ter uma estimativa de quando poderá voltar para casa.

Apesar de todas as perdas, esperança é a palavra que, segundo ele, marca esses cinco anos.

“Mesmo que as coisas da vida abalem a gente, Deus é maior. Pode demorar, mas a gente tem que ter esperança que vai vir o melhor depois. Se a gente perder, acaba a força, a gente entra num fracasso sem volta e fica difícil para gente mesmo e para as outras pessoas”, diz.

 

Tiago, bombeiro

Além de dona Gracita, a tragédia deixou mais quatro vítimas em Bento Rodrigues. As outras 14 trabalhavam no Complexo de Germano, onde se localiza a barragem de Fundão. Para localizar os corpos, durante quase dois meses, mais de 1,6 mil integrantes do Corpo de Bombeiros trabalharam nas operações de resgate em Mariana.

Um desses militares é o capitão Tiago Costa, de 30 anos. Naquela época, ainda tenente, o oficial do Batalhão de Emergências Ambientais e Resposta a Desastres (Bemad) acumulava seis anos de experiência na corporação. Ele se recorda que, na tarde em que a barragem se rompeu, estava de plantão. “Recebemos uma ligação falando da possibilidade do rompimento, mas a situação ainda estava para se confirmar”, recorda.

A equipe do capitão foi uma das primeiras que chegaram à região de Bento Rodrigues. E lá ele permaneceu nos dez primeiros dias após o desastre, sem que voltasse para casa.

Acostumado a atuar em situações adversas, enquanto seguia para Mariana, o militar ainda não tinha dimensão do desafio que encontraria.

“Foi algo inesperado. Algo daquele tamanho foi uma surpresa para todo mundo. A minha equipe foi por terra para Bento Rodrigues. Só quando cheguei, aí sim tive a dimensão do que foi a tragédia”, relembra.

 

O capitão conta que, no primeiro momento, a prioridade era retirar as pessoas que estavam na lama e também criar mecanismos para que as pessoas pudessem ser evacuadas. Ele e outros militares passaram a madrugada abrindo uma estrada para que os moradores ilhados fossem retirados dali.

Entre os momentos que mais marcaram a memória do capitão em relação àqueles dias de trabalho incessante, dois envolvem a frustração de não poder levar conforto às famílias das vítimas.

“Tinha uma criança, o Thiago, meu xará, que estava desaparecido desde o início. Conseguimos localizar a casa, os brinquedos. Era uma esperança muito grande de o corpo ser encontrado ali. A intenção era dar aquele alento, mesmo sabendo que não era possível encontrá-lo com vida”, recorda.

Entretanto, o corpo do garoto, de 7 anos, acabou sendo encontrado em outro local e foi reconhecido 6 dias após o desastre.

A outra marca que o militar carrega da tragédia é o fato de uma das 19 vítimas, o funcionário da Samarco Edmirson José Pessoa, de 48 anos, nunca ter sido localizado.

Durante três anos, o capitão e outros militares do batalhão acreditaram que a tragédia de Mariana seria a maior ocorrência em que atuariam ao longo da carreira no Corpo de Bombeiros. Mas, em janeiro de 2019, Minas Gerais foi palco de mais um desastre da mineração: o rompimento da barragem da Vale, em Brumadinho.

O oficial também participou ativamente da operação de resgate no Córrego do Feijão. A equipe coordenada por ele foi a responsável pela localização do refeitório, onde estavam diversas das 270 vítimas da tragédia.

Após os dois desastres, o capitão torce para que nada parecido se repita, mas diz que os bombeiros seguem se preparando para qualquer situação.

“A frase que nós temos é que é melhor estar preparado para o impossível do que ser surpreendido pelo inesperado”, diz.

 

Guilherme, promotor

Se em uma frente autoridades do estado estavam preocupadas em localizar os corpos das vítimas que perderam a vida, em outra o objetivo era fazer cumprir os direitos daqueles que conseguiram sobreviver, mas viram ir embora tudo o que tinham.

Desde os primeiros momentos da tragédia, o promotor Guilherme Meneghin tem atuado para buscar garantias aos atingidos. Nascido em Ouro Preto, antes de ingressar na 1ª Promotoria de Mariana, atuou como advogado e delegado e morou em outros locais do estado. Ao voltar para sua região, esperava encontrar tranquilidade e aproveitar a proximidade da família. Mas essa expectativa não corresponde à rotina dos últimos cinco anos.

A primeira informação que teve sobre a tragédia foi por meio de uma ligação que sua assessora recebeu de parentes, relatando o rompimento da barragem e dizendo que a avalanche de rejeitos poderia atingir Barra Longa, cidade que também teve uma comunidade destruída.

“Logo a gente achou que era algo extraordinário, que não parecia nem ser verdade. Recebemos outras ligações. E então comecei a entrar em contato com colegas do Ministério Público, Polícia Militar, Corpo de Bombeiros”, relembra.

 

O promotor foi até a Arena Mariana, ginásio para onde seriam levados os moradores desabrigados. “Fui até lá para recepcionar as pessoas. Mas a ficha caiu que a gravidade era maior que a gente podia imaginar. A Arena Mariana ainda estava vazia. Fiquei ainda mais preocupado quando descobri que as pessoas ainda estavam ilhadas”, recorda.

Ainda nas primeiras 24 horas após a tragédia, Meneghin começou a colher depoimentos dos sobreviventes. Cinco dias após o rompimento, o promotor moveu a primeira ação contra a Samarco e suas controladoras. Hoje, mais de 1,8 mil dias após desastre, já são 25 processos ajuizados pelo MPMG em Mariana relacionados à tragédia.

A quantidade de ações civis públicas, cautelares e de cumprimento de sentença se justificam diante da demora e da negativa em relação ao cumprimento dos direitos dos atingidos. Meneghin cita como exemplos a postura da Fundação Renova, que classifica como ineficiente, em relação à reconstrução das comunidades atingidas e ao pagamento de indenização.

“Além do crime no dia 5, há uma continuidade de atos ilegais da Renova, atuando em nome das empresas. Na maioria das vezes, ela atua somente sob pressão do Ministério Público, do poder Judiciário e da manifestação dos atingidos”, afirma.

Ao tentar resumir os últimos cinco anos, o promotor aponta a palavra injustiça. “A gente ainda tem muitas vezes no Brasil a culpabilização das vítimas. A Renova não pediu perdão pelo crime e por todas as falhas nesses cinco anos. No dia em que eu ouvir isso, um pedido de perdão, aí eu vou começar a acreditar na Fundação Renova”, diz. A entidade não quis comentar a declaração.

Para o futuro, ele espera que os direitos conquistados pelos moradores de Mariana, por meio de acordos e decisões, sejam garantidos em lei a todas a vítimas de desastre, evitando assim batalhas judiciais como as que vem enfrentando ao longo destes cinco anos.

Vera, ativista

Além dos questionamentos na Justiça, a atuação da Fundação Renova foi inúmeras vezes alvo de protestos de moradores. A aposentada Vera Lúcia Aleixo e Silva, de 64 anos, já perdeu as contas de quantas manifestações participou desde o rompimento da barragem.

“A dor é tão grande que me empoderou para lutar por mim e pelo outro. Essa coragem vem da dor e da necessidade. Eu luto mais é por causa dessas pessoas que já perderam a esperança, e a pior coisa na nossa vida é perder a esperança. Se depender de eu lutar, eu vou lutar até quando tiver força”, diz a idosa.

 

Depois do rompimento de Fundão, a aposentada tornou-se integrante da comissão dos atingidos e também do Movimento de Atingidos por Barragem (MAB).

Do dia 5 de novembro de 2015, ela não se esquece do “barulho apavorante” da chegada da lama em Gesteira, distrito de Barra Longa (MG), nos últimos minutos do dia. “Chegou arrasando tudo, por volta das 23h45. A lama não vinha de manso que dava para sair fora. Perdi minha casa inteira, que tinha acabado de reformar”, rememora.

Vera nasceu, cresceu e criou sua família em Gesteira, mas há cinco anos vive em Mariana, em uma casa alugada pela Fundação Renova. Para ela, o sentimento que representa esse período é a tristeza.

“O que eu levei 40 anos para construir, eles levaram 20 minutos para destruir”, afirma.

 

Mãe de três filhos, Vera complementava a renda com serviços de cabeleireira e manicure em um salão domiciliar, atividade que não conseguiu retomar em Mariana. Já o marido, plantava feijão, milho, verduras e frutas, que garantiam um dinheiro extra para família.

A luta pelo reconhecimento pela perda de renda levou cerca de três anos. E, só depois de mais de quatro anos, a aposentada conseguiu receber uma indenização pelos danos sofridos na tragédia.

Até o fim de agosto, segundo a Fundação Renova, R$ 2,6 bilhões haviam sido destinados ao pagamento de auxílios financeiros emergenciais e indenizações a mais de 321 mil pessoas ao longo da bacia do Rio Doce.

Entretanto, esses cinco anos não foram suficientes sequer para que Vera consiga ter expectativa de quando poderá ter de volta uma casa própria. Vinte e seis famílias devem ser reassentadas na nova Gesteira, mas até hoje o projeto das obras ainda não saiu do papel.

Outras oito famílias optaram pelo reassentamento familiar e, segundo a Renova, já foram fechados os acordos.

José Márcio, pescador

Nestes 60 meses, também não foram trazidas respostas definitivas sobre a questão ambiental para quem vive na região da Usina Hidrelétrica Risoleta Neves, mais conhecida como Candonga. A estrutura serviu de barreira para parte da lama que vazou da barragem de Fundão.

Segundo a Renova, cerca de 9,6 milhões de metros cúbicos de rejeito ficaram retidos na área da usina. Em cinco anos, apenas 10% desse total foram removidos do local.

Essa situação é uma preocupação que atormenta José Márcio Lazarini desde o dia 6 de novembro de 2015, quando o “mar de lama” chegou à cidade do Rio Doce. Além de pescador, ele é garimpeiro, mas hoje trabalha como pedreiro para conseguir sustentar a família.

“Transformou a nossa vida em outro jeito de viver. Hoje não tem mais o rio, a gente sofre muito ainda. A gente até vai no rio, mas não é mais igual antigamente. (…) A única fonte de renda que a gente tinha aqui era o rio. Ele era o nosso patrão. Não era só ouro e peixe, tinha cascalho, pedra, areia. Hoje não temos nada”, diz.

No momento em que a barragem se rompeu, José Márcio estava dentro da água, como foi costume em grande parte da vida. O pescador só ficou sabendo da tragédia quando chegou em casa, à noite, e assistiu ao jornal.

Na manhã seguinte, ele retornou ao rio, sem saber que aquele seria o caminho do “mar de lama” e presenciou cenas como aquelas que havia visto pela televisão. “Nem gosto de lembrar desse dia. Chorei porque via peixe, capivara debatendo no barro para morrer”, conta.

Apesar de integrar a comissão de atingidos de Rio Doce, José Márcio precisou de cerca de dois anos para que fosse reconhecido formalmente como atingido pela Fundação Renova.

Atualmente, além de se preocupar com a situação do auxílio emergencial, que pode ser reduzido no fim do ano, José Márcio se inquieta com a morosidade do processo de recuperação ambiental de Candonga. Ele e outros moradores têm medo que o lago da usina volte a ser enchido sem que todo rejeito seja retirado. O temor foi motivo para uma série de protestos em outubro.

Na época, a Renova disse que estudos recentes haviam demonstrado que a remoção da totalidade do sedimento “teria um alto impacto ambiental” e que “assim se definiu por dragar até a cota de 300 metros, apenas o suficiente para possibilitar o retorno operacional da UHE Risoleta Neves”.

Agora, a fundação afirma que os impactos de três cenários foram avaliados e que eles foram submetidos ao órgão ambiental por meio do processo de licenciamento para que seja definida a alternativa que permita a recuperação ambiental da área e o retorno operacional da usina.

Para José Márcio, o sentimento que resume esses cinco anos é o de revolta.

“Porque a gente foi atingido diretamente e nem assim eles reconhecem o nosso desespero e a nossa luta. Se eles fizeram a tragédia, deveriam cumprir o dever de casa deles e não tem tido compromisso. Acho que daqui a 5 anos vai continuar a mesma coisa. A esperança nossa é que o rio seria recuperado, mas parece que vai continuar tudo do mesmo jeito”, desabafa.

 

O que dizem as mineradoras

 

A Samarco afirmou que “os impactos causados pelo rompimento da barragem de Fundão nunca serão esquecidos” pela empresa. “Ressalta a complexidade das ações que estão sendo executadas pela Fundação Renova, como as compensações financeiras, recuperação da flora e fauna, além dos processos de reassentamentos que contam com a participação direta dos atingidos e do poder público em todas as etapas e são acompanhados pelo Ministério Público de Minas Gerais.”

A Vale disse que, “como acionista da Samarco, reforça o compromisso com a reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão, prestando todo o suporte à Fundação Renova, responsável por executar os programas de reparação e compensação das áreas e comunidades atingidas”. De acordo com a Vale, esses programas receberam, até agora, mais de R$ 10 bilhões.

A BHP Billiton disse que “está absolutamente comprometida com as ações de reparação relacionadas ao rompimento da barragem de Fundão e com o trabalho desenvolvido pela Fundação Renova no avanço dos programas sob sua responsabilidade”.

“Até setembro deste ano, a Renova já desembolsou R$ 10,1 bilhões nos programas de remediação e compensação. Dentre as ações, repassou mais de R$ 830 milhões para investimentos em educação, saúde e infraestrutura em cidades da bacia do Rio Doce e ainda pagou, até agosto de 2020, cerca de R$ 2,6 bilhões em indenizações e auxílios-financeiro emergenciais a mais de 321 mil pessoas. Até mesmo os trabalhadores informais, com dificuldades para comprovar como foram atingidos, começaram a ser pagos: desde agosto deste ano, mais de 500 trabalhadores dessas categorias receberam suas indenizações e quase 6.000 informais se registraram para terem suas demandas analisadas pela Fundação”, disse a mineradora.